Chegadas premiadas
Que o concurso Miss Universo é tomado como vitrine para estratégias diplomáticas, como um torneio capaz de abarcar as diferenças em uma “competitividade saudável”, todo mundo sabe. Emerge com mais força logo após a II Guerra Mundial e tem por função dar abrigo ao que de melhor cada país pudesse contribuir.
Dessa forma, não é de surpreender que haja uma política de boa recepção: é muito comum que um país, ao enviar pela primeira vez uma representante para o concurso, consiga uma posição destacada – com a função de sublinhar a importância desta participação e o fato de se manterem portas abertas para as novidades.
É bem verdade que isso não aconteceu com todos os países, e alguns como Malta, Bulgária, Egito, Bahamas, Portugal ou Romênia sequer conseguiram classificações em toda a sua história, até 2010. Mas esta descortesia flagrante tem menos visibilidade do que a habitual política de favorecimento, na chegada.
Alguns países ultrapassaram todas as barreiras e emplacaram, logo de partida, uma vitória em seu debut. Foi o caso de Botswana, que chegou à vitória em sua primeira participação com Mpule Kwelagobe, em 1999. Curiosamente, o título não conseguiu criar a devida regularidade de presença para o país que, embora tenha vencido de cara, tornou-se presença inconstante na década seguinte.
Mais inexplicável é o caso da Colômbia. Quando trouxe sua primeira miss, em 1958, o país coroou Luz Marina Zuluaga e nunca mais chegou ao primeiro posto, apesar do fortalecimento do concurso local e da fortíssima tradição desenvolvida a partir de então, responsáveis por fazer da Colômbia uma potência do mundo-miss. Em diversas ocasiões, as colombianas estiveram à beira da consagração, mas viram suas expectativas morrerem na beira da praia.
Mas 1958 foi um ano generoso em relação aos que aportavam: a polonesa estreante Alicja Bobrowska foi a quinta colocada; e o Suriname (país que jamais obteria novamente este feito) também alcançou as semi-finais com Gertrud Gummels. Não bastassem, também os Países Baixos foram semifinalistas e venceram o prêmio de Fotogenia para Corine Rottschaefer (era a segunda participação da faixa Netherlands, quase uma compensação pelo que não ocorrera em 1957).
Como se vê, este hábito vem dos primórdios, já na primeira década do concurso, iniciado em 1952. Ainda na primeira década são emblemáticos os casos de Guatemala (Maria Del Rosário Molina Chacón, 1955), Inglaterra (Margaret Rowe, 1955) e Marroco (Jacqueline Dorella Bonilla, 1957), todos semifinalistas.
Mas casos como o do Brasil, que em 1954 envia Martha Rocha para a competição e alcança já uma segunda colocação que se torna um assunto nacional por décadas de inconformismo devido às míticas duas polegadas amplificam a questão a uma potência singular. Como o Brasil, também o Sri Lanka, que no ano seguinte, em 1955, estreou com a segunda colocação de Maureen Neliya Hingert teve a mesma recepção, mas por lá as classificações pararam imediatamente após esta primeira grande conquista.
Na década de 1960, mais países estrearam com bons resultados, criando então a frase feita de que país novo sempre alcança posição privilegiada: em 1960, a Espanha chegou destacando-se com o imediato quinto lugar de Maria Teresa Del Río. Em 1961, foi o País de Gales que, como Brasil e Sri Lanka, traz sua primeira miss e conquista, com a segunda posição de Rosemarie Frankland, o mais alto posto de sua história (somente reeditado em 1974).
Curiosamente, Espanha e País de Gales iriam enfrentar-se diretamente em 1974, quando a inesquecível Amparo Muñoz levou a melhor sobre a galesa Helen Elizabeth Morgan numa das disputas mais acirradas de todos os tempos – devido às incomparáveis belezas das duas candidatas. Amparo foi eleita, mas ironicamente renunciou à coroa tempos depois, para se casar. Mesmo assim, não foi destituída pela organização Miss Universo.
Ainda em 1961, Escócia e Taiwan chegaram às semi-finais com as estreantes Susan Jones e Wang Li-Ling (Lily), respectivamente. Em 1962, a estréia do Haiti, com Evelyne Miot, teve o mesmo destino. Em seu segundo retorno, após abandono do concurso, em 1975, a haitiana Gerthie David chegou à segunda colocação. Mas a freqüência pouco ortodoxa do Haiti, que teve boas recepções em duas ocasiões, fez com que este privilégio fosse perdido em seus próximos retornos, em 1985 e 2010. Esperava-se que Sarojn Bertin Durocher passasse às semi-finais, apesar do sobrepeso, devido ao avassalador terremoto ocorrido meses antes do concurso. Seria um modo de dar destaque às causas humanitárias, mas a organização preferiu abster-se disso.
Também os Bálcãs tiveram suas chances de boas-vindas. A Iugoslávia de 1968, representada por Daliborka Stojsic, foi semifinalista em sua boa recepção e ainda foi brindada com o prêmio de Fotogenia. Décadas mais tarde, ao retornar ao concurso em 1991, em pleno processo de desagregação em vias de ocorrer, a Iugoslávia ainda conseguiu classificação para a semifinalista Natasha Pavlovic.
Aqui começam as sagas dos países do Leste Europeu, que se formam a partir dos anos 1990. Para além da política diplomática, também a afirmação patriótica colaborou para que estes países incentivassem a produção de ícones nacionalistas e populares, inclusive misses. Rapidamente, conseguiram destaques e posições invejáveis.
A República Tcheca chegou às semi-finais em 1993, com Pavlina Barbukova. Na década seguinte, esta faixa teria ainda bons resultados consecutivos, a partir de 2007, demonstrando a solidez do concurso local. Em 1994, a Eslováquia (Slovak Republic) unaugura suas participações indo ainda mais longe, com o Top 6 de Silvia Lakatosova. Não se pode esquecer que a estréia da Tchecoslováquia, ainda em tempos de Guerra Fria e Cortina de Ferro, em 1970, presenteou com desfiles de semi-finais a moça Kristina Hanazolova.
Alçadas à condição de ícone patriótico (basta lembrar de Martha Rocha e se tem a dimensão precisa), estas meninas realizaram, com ou sem consciência, estratégias diplomáticas importantes. É o caso de Sanja Papic, quarta colocada de 2003 representando a então faixa de Sérvia & Montenegro. Desde então, não haveria mais classificações para estes países até 2010.
Assim como apenas haveria destaque para a Letônia em sua primeira participação, com a louríssima, apelidada de “Barbie Real”, Ieva Kokorevica.
À semelhança da República Tcheca, a Albânia se destacaria posteriormente, entre os anos de 2009 e 2010 (quando as super-modelos Hasna Xhukiçi e Anxhela Martini concorreram), e, em 2002, deu a Anisa Kospiri a vantagem de primeira miss do país, logo após a consolidação de seu processo democrático.
O vizinho Kosovo, que tem excedente populacional refugiado na Albânia, criando relações de dependência e de crise, também obteve ótimos resultados, assim que se pôs a disputar o Miss Universo. Zana Krasniqi esteve no Top 10 de cara, para chegar ao altissonante terceiro posto em 2009, com a igualmente exótica Marigona Dragusha.
Fora da Europa, outros processos de abertura política se deram, na Ásia e na África. Zhuo Ling, a altíssima Miss China de 2002, superou os obstáculos de todas as espécies para cravar a terceira colocação no ano de 2002 – e chegando ao posto de primeira sucessora quando a russa vitoriosa Oxana Fedorova foi destronada, por desacordos junto à Organização Miss Universo. Era a abertura chinesa, mostrando as garras de seu inquestionável crescimento econômico e dando voz à sua imensa visibilidade no Ocidente, na contemporaneidade.
Na África, poucos países enviam misses. A miséria desvia o foco para atenções mais urgentes e são apenas primeiros os passos que trazem ao concurso países como Gana, Namíbia ou Angola. Contudo, a primeira participação da Tanzânia, em 2007, deu à careca fashion de Flaviana Matata a condição de Top 10 – ocupado, neste ano, também pela angolana Micaela Reis; Flaviana foi a sexta colocada, Micaela a sétima (a angolana teve colocação de destaque no Miss Mundo do mesmo ano).
Muitas exceções fogem a esta regra. Mas são cabais os exemplos que dão à chegada a possibilidade de figurar nos tops e posição destacada no evento de mídia, que é o Miss Universo. É prova concreta de influência política nas decisões, que fazem com que o concurso julgue muitas outras coisas, para além da beleza.
Atualmente, é sabido que existe a Trump Choice – escolha pessoal de Donald Trump para as 15 semifinalistas. Há uma ocasião, durante o concurso, em que o magnata cumprimenta todas as candidatas. Elas ficam em fila, em ordem alfabética. Uma assessora, com papel em mãos, anota todas as percepções de Trump que deixa aos jurados a missão de escolher as 9 ou 10 melhores, e dá a si o poder de definir, segundo critérios evidentemente econômicos, políticos e/ou de justificativa subjetiva, as 5 ou 6 restantes.
As pré-classificadas têm uma noite bastante diferenciada em relação às demais candidatas, que permanecem no show na condição figurantes. Apenas estas desfilam na noite decisiva (todas desfilaram antes no Presentation Show, diante do júri), nos diversos tops com roupas de gala e de banho (a cada ano, o formato sofre alguma modificação), no foco das câmeras de transmissão mundial para milhões de espectadores.
Muitas injustiças se fazem, por causa disso. Mas, segundo Trump, as coisas passaram a ser assim justamente para corrigir certas distorções que o concurso, que deve ter interesse para todo o mundo, cometia em concursos em que certo padrão de beleza se definia, sem espaço para traços étnicos ou corpos não-latinos.
De qualquer forma, a injustiça se compensa com a participação compartilhada dos diversos países, fator que dá ao concurso maior representatividade, especialmente em tempos de globalização.
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