terça-feira, 15 de junho de 2010

Negro é lindo?

A Copa do Mundo de futebol de 2010, nas redondezas de Soweto, emocionou o mundo por criar novas imagens midiáticas historicamente decisivas, que revelaram amplas possibilidades de convívio entre brancos e negros em um país marcado pela experiência racista, sustentada pela lei. O poder simbólico da veiculação destes materiais nas mídias é, evidentemente, de valor inestimável!



Mas nem sempre a busca pela harmonia racial foi tomada como a opção econômica e política mais viável, na África do Sul – e no mundo! As elites colonialistas ali se implantaram e forjaram um mundo idealizado, macabramente platônico, em que a dominação do território africano se pautou pela exploração preconceituosa do negro, considerado social e esteticamente inferior.

Desde 1948, quando o regime de Apartheid (“separação”, em africânder) passou a vigorar com legitimidade jurídica, até a eleição de Nelson Mandela, em 1994, para o cargo de Presidente da República, o horror diário da humilhação condenou a maioria negra e pobre à relegada condição de sub-classe, com direitos civis restritos, e vitimada pelo consequente rebaixamento da auto-estima que faz o negro um sujeito, além de tudo, feioso.

Nos anos mais terríveis da Guerra Fria, numa época em que o Apartheid assumia seu caráter extremo, com o absurdo levado ao paroxismo, nada podia ter sido pior e mais conservador, do ponto de vista simbólico e midiático (político!), do que a escolha da branca Margaret Gardiner para a coroação como Miss Universo, em 1978. Uma Miss África do Sul branca e vitoriosa foi, certamente, um golpe brutal para as lutas por igualdade e pela ascensão da auto-estima negra.

Era uma imagem que se vendia ao mundo. E não ingenuamente...

A compensação conservadora era evidente e se mostrava ainda mais cruel porque vinha, no contra-fluxo modernizador do ano anterior, quando Janelle Comissiong, a elegantíssima Miss Trinidad & Tobago, foi declarada a primeira ganhadora negra da história do concurso mundial. Após um breve respiro multiculturalista, em que os padrões de beleza se desestabilizaram para apontar dinâmicas de renovação, a onda do mar do retrocesso engoliu a todos os que festejavam na areia da praia.



O fato de Gardiner ter sido, durante todas as etapas do concurso, uma concorrente apenas mediana, com notas pífias (era a primeira vez que os telespectadores podiam ver as notas recebidas pelas candidatas, graças às novas tecnologias!), e que chegou ao Top 5 como mera coadjuvante, amplia o teor de desconfiança das teorias conspiratórias. Sua vitória teve sabor de resposta autoritária, um cala-boca aos que se identificassem com as perigosas ideias progressistas.

Nos filmes hollywoodianos da época, o medo instaurado pelos anos da Guerra Fria justificava e oferecia apoio ao assassinato frio de negros, sem nenhuma justificativa plausível. O protagonista de Desejo de Matar (1974 e anos seguintes), por exemplo, fazia isso indiscriminadamente, em nome da lei; e com o requinte de vermos, ao final, o herói encarnado por Charles Bronson sendo absolvido pelos tribunais brancos de justiça.

Eram tempos difíceis. E era muito incomum assistirmos ao sucesso de uma miss negra, nos concursos de beleza. Ser negro estava (assim como ainda está) fora dos padrões aceitáveis/desejáveis. Uma Miss Haiti havia conquistado um surpreendente segundo lugar em 1975; outra Miss Curaçao também chegara perto da coroa em 1968; e as coisas paravam mais ou menos por aí!

Durante todos os anos 1980, pouquíssimas misses negras conquistaram vagas como semifinalistas (a Miss Brasil 1986, Deise Nunes, foi uma dessas exceções que confirmam a regra) e, curiosamente, foi somente após meados dos anos 1990 – sintomaticamente, quando o Apartheid é derrubado pela economia globalizada e declarado mundialmente imoral – que algumas misses negras conseguiram algum sucesso.

Anacronicamente, ainda em 1991, uma Miss Namíbia loira foi eleita Miss Universo! Beira o inacreditável... Especialmente porque Michelle McLean era, apesar de loira, definitivamente, feia e aguada!

Entretanto, com a chegada multicultural, as imagens da cultura da mídia foram se modificando: a Miss USA 1995, Chelsi Smith; também a Miss Trinidad & Tobago 1998, Wendy Fitzwilliam; e a Miss Botswana 1999, Mpule Kwelagobe consagraram-se e venceram o Miss Universo em concursos praticamente consecutivos, logo após a queda do Apartheid.



Ainda assim, mesmo nas condições críticas de hoje, essas são misses que são vítimas de constante deboche nas comunidades temáticas das redes sociais contemporâneas, xingadas, dentre outros nomes pouco lisonjeiros, de “macacas”. E é mais comum vermos negras figurarem apenas enquanto cota racial nos Tops dos concursos, numa atitude meramente protocolar. Não é raro, contudo, receberem, como prêmio de consolação indesejável, o troféu de Miss Simpatia, ofertado cinicamente pela piedosa e esmagadora maioria de misses brancas – inclusive aquelas que representam países cujos povos são formados por maiorias negras, mestiças ou índias.

Como nos ensinou o estudioso Douglas Kellner, em seu clássico A Cultura da Mídia: “Nos anos 1990, muitos dos novos discursos teóricos alinharam-se sob o rótulo de ‘multiculturalismo’. Afirmavam a alteridade e a diferença, bem como a importância de atender aos grupos marginalizados, minoritários e contestadores, antes excluídos do diálogo cultural. O multiculturalismo provocou novas guerras culturais, uma vez que, contra a ofensiva multicultural, os conservadores defenderam a cultura ocidental clássica, com seus cânones ditados por grandes homens europeus (sobretudo). Opondo-se ao multiculturalismo, os conservadores (re)afirmavam o monoculturalismo, provocando um novo round de intensas guerras entre teorias e culturas, guerras que ainda estão sendo travadas”.

É triste. Muito triste. Mas não podemos deixar de ver... E muitas delas são tão lindas!

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