Oriente-Ocidente
Quando, em 2007, o concurso Miss Universo foi aclamado como a disputa do ano de preferências asiáticas, percebemos como a memória de curto alcance apaga acontecimentos midiáticos recentes. Ninguém mais se lembra do passado de poucas décadas atrás; e o acontecimento atual, que é pastiche de outro anterior, parece inédito em nossa amnésia histórica.
Embora a polêmica coroação de Riyo Mori, Miss Japão, somada à presença indiscutível da sul-coreana Honey Lee entre as finalistas, indicasse uma clara tendência “orientalizante” nas escolhas das premiações (isso tudo, sem levar em conta o título de Miss Simpatia destinado à China e o de Miss Fotogenia que parou nas mãos das Filipinas; além de outras presenças no top, como Tailândia e Índia), este não foi, definitivamente, o ano asiático por excelência, no universo do concurso Miss Universo.
Menos de duas décadas antes, em 1988, o concurso foi realizado em Taiwan e, em um impactante espetáculo feito de danças populares chinesas – que construíam cenários humanos capazes de mimetizar gigantescas flores, dragões em movimento e vôos de borboletas – a opção por orientais chegou a limites bastante contestados pelas delegações de outros continentes, e superiores à tendenciosa escolha de 2007.
Em 1988, se no Top 10 já havia um número privilegiado de garotas com olhos puxadinhos para os parâmetros tradicionais da competição (aspecto digno de festejos, não fosse o concurso realizado onde foi, sob suspeita, portanto, de politização), fato capaz de surpreender as próprias concorrentes, que não mais esperavam ser convocadas devido ao excesso de asiáticas escolhidas para as semifinais, a coisa esquentaria muito no decorrer dos desfiles.
Num ano em que os cabelos armados e repicados dos anos 80 deram o tom das memoráveis imagens da moda de então, e que seria também muito lembrado pelos inenarráveis vestidos que beiravam o camp, todas as orientais presentes no Top 10 foram também selecionadas para o inédito Top 5 dominado pela Ásia.
Assim, Tailândia, Coréia do Sul, Japão e Hong Kong ocuparam o Top 5 com a elegância comedida da beleza representante da região do Sol Nascente. Para além destes resultados impressionantes (apenas a Miss México ousou desafiar o coro e capturar uma vaga entre as finalistas), também a ilha de Guam abocanhou o prêmio de Miss Simpatia. Se houve um ano asiático, não foi 2007, mas 1988.
Curiosamente, a coroa foi destinada à jovem com os traços faciais mais ocidentalizados, dentre as finalistas. Porntip Nakhirunkanok, Miss Tailândia de nome impronunciável que foi adaptado para a mídia ocidental para o não menos difícil apelido de P´Bui, frustrou os planos dos que esperavam a vitória de uma oriental típica. Venceu uma moça do Oriente, mas sua beleza era, paradoxalmente, um tanto mestiça.
A escolha de uma asiática de feições mais “brandas” foi coisa bastante reveladora das contradições que regem o mundinho dos concursos, especialmente em um certame que pareceu ter sido conduzido por opções políticas tão definidas – embora contasse com ilustríssimas figuras como Valentino entre os jurados.
Para se ter uma idéia do acirramento das disputas entre Oriente e Ocidente, neste ano, a Miss Japão, Mizuho Sakaguchi (4ª. colocada), respondeu de forma categórica e bélica em sua entrevista ao estilo Pearl Harbor (resposta tão comentada internacionalmente, que fez com que Mizuho fosse comparada, ironicamente, a uma PhD pela Revista Manchete que cobria o concurso na época – em apenas meia página, sinal da decadência do concurso e, junto com ele, da revista).
Perguntada sobre a diferença entre a literatura americana e a literatura japonesa, a Miss Japão não titubeou e respondeu, firme: “É uma diferença de 1000 anos. Favorável ao Japão!” Está aí uma miss que, parece, preferiu outras leituras ao caricatural Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry.
sábado, 19 de junho de 2010
Guerra Fria: USA x URSS
Durante os anos de Guerra Fria, seja por boicote ou por absoluta descrença nos valores alinhados à cultura de massa estadunidense, não houve confrontos entre Estados Unidos e União Soviética nos concursos para Miss Universo. A URSS não enviava candidatas e era muito raro que um país ligado à Cortina de Ferro comunista também o fizesse.
Quando isso ocorria, entretanto, era ocasião para que o concurso sublinhasse e valorizasse tal presença. E a Miss Polônia de 1986, Brygida Bziukiewicz, como exceção que era, tomou então diversos sustos quando foi convocada para as listas do Top 12 e do Top 5, no ano da vitoriosa Barbara Palácios, da Venezuela.
A loira polonesa que, por não conhecer a língua inglesa demorou bom tempo até perceber que estava selecionada para as semifinais (ela aplaudia tranquilamente quando a câmera a flagrou – agia como se outra candidata tivesse sido chamada por Bob Barker), acabou o concurso na 4ª. colocação.
Tamanha era a distância entre o Leste Europeu e os frívolos concursos de beleza.
Foi apenas em 1989, com a abertura política visando transparência (Glasnost) e a reconstrução econômica (Perestroika), ambas operadas pelo governo de Mikhail Gorbachev, que a URSS elegeu sua primeira miss. Ainda que não tenha participado do concurso Miss Universo daquele ano, esta coroação foi celebrada com imagens festivas, transmitida para todo o mundo via CBS, com um certo pendor de alívio.
O comentário subliminar era: “eles demoraram, mas reconheceram enfim que nossas instituições são melhores; agora eles também têm uma miss!”. A transmissão destas imagens, como destaque na programação televisiva, configurava com clareza também uma celebração de vitória americana na Guerra Fria contra os renitentes soviéticos. Era a vitória do poder brando, midiático, sem a necessidade de intervenções militares.
Mas, somente em 1990, com o retorno da Tchecoslováquia ao concurso e com a primeira aparição de uma Miss URSS, Evia Stalbovska, é que a tentativa de integração de fato se deu. Para não fugir à regra, o destaque foi dado a ambas as concorrentes. A soviética mereceu breve comentário por parte dos apresentadores (a câmera a destacou entre as 71 concorrentes, sob pedido de aplausos feito pela hostess Leeza Gibbons) e a tcheca Jana Hronkova figurou entre as semifinalistas do Top 10, ainda que com as médias mais baixas possíveis, em seus scores.
Para culminação da crise soviética, sua última aparição sob esta denominação se deu em 1991, com a problemática e belíssima Yulia Lemigova. Com uma elegância pouco afetada e uma simplicidade comovente, Yulia se destacou e terminou a competição na terceira colocação, em um dos Top 3 mais acirrados e surpreendentes da história do Miss Universo.
A história trágica de Lemigova, na sequencia, metaforiza o despreparo dos russos para a vida endinheirada. Casada com o banqueiro Edouard Stern, encontrado morto após uma malfadada sessão de sexo sadomasoquista (o corpo estava com roupas de látex), em seu apartamento de Genebra em 2005, ela também perdeu o seu filho aos 5 meses de idade. Ao que parece, uma babá búlgara o espancou e o deixou com ferimentos letais nos órgãos internos. Lemigova herdou uma fortuna, e muita tristeza.
Em 1992, já não existia mais URSS. Uma miss da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), Lidia Kuborskaya, representou sem êxito a antiga potência militar, que estava agora à beira do colapso. Neste ano, Hungria, Bulgária, Polônia estiveram presentes, com desistência da Iugoslávia.
A partir do ano seguinte, os estados independentes da ex-União Soviética ganharam território próprio no concurso: Estônia em 1993, Rússia em 1994 e Ucrânia em 1995; mas isso não significou reconhecimento internacional imediato de seus povos. Para participar do concurso de 1994, a russa Inna Zobova ficou detida, segundo a agência Reuters, por 15 horas seguidas em uma sala sem janelas no aeroporto de Bangkok, por falta de documentação necessária, antes de seguir para Manila, onde ocorreria o concurso.
As diferenças culturais e certos acirramentos subliminares entre antigos rivais ecoaram ainda por bom tempo, mesmo após o fim da Guerra Fria: quando, em 2002, Oxana Fedorova foi declarada a primeira russa vitoriosa no concurso Miss Universo, a aparente reaproximação dos mundos pouco ou nada durou. Por priorizar razões pessoais (e sob falsa acusação de gravidez), Oxana teve dificuldades para cumprir as exigências de sua agenda como Miss Universo e foi destronada – figurando até hoje como a única Miss Universo destituída da história.
Coincidências à parte, Oxana Fedorova – que venceu de cabo a rabo todas as etapas do concurso que disputou – foi substituída por Justine Pasek, uma representante do submisso canal do Panamá, país que é historicamente um território de dominação americana inquestionável. Desde então, e até hoje, não tem sido fácil o sucesso das russas nos concursos de Donald Trump.
Tirando a sorridente Vera Krasova, quarta colocada em 2008, nenhuma outra passou ao Top 5, desde Fedorova. Sofia Rudieva, uma das favoritas nas preliminares de 2009, evocada por sua “beleza russa perfeita por diversos especialistas”, sequer figurou no Top 15 (talvez por ter tirado fotos eróticas e parecer pouco afeita aos compromissos exigidos à detentora da coroa).
A possibilidade de redenção está agora nas mãos de Irina Antonenko. A exemplo de uma outra russa, Natalie Glebova, eleita Miss Universo ao representar o Canadá em 1995, Irina apresenta uma daquelas “belezas perfeitas”, que só não alcança as primeiras posições se houver algum tipo de intervenção política.
Nos concursos de uma organização secundária, de menor envergadura, intitulada Miss World, a Rússia não sofre tantas desventuras: venceu em 2006 com Ksenia Sukhinova e também em 1992, com Julia Kourotchkina. Mas o Miss World é uma organização inglesa, não norte-americana.
Isso, para os ares vindos da Guerra Fria, faz toda a diferença. Ainda hoje, uma russa vencer representando o Canadá soa mais natural do que o bombástico som russo sendo declarado vencedor.
Durante os anos de Guerra Fria, seja por boicote ou por absoluta descrença nos valores alinhados à cultura de massa estadunidense, não houve confrontos entre Estados Unidos e União Soviética nos concursos para Miss Universo. A URSS não enviava candidatas e era muito raro que um país ligado à Cortina de Ferro comunista também o fizesse.
Quando isso ocorria, entretanto, era ocasião para que o concurso sublinhasse e valorizasse tal presença. E a Miss Polônia de 1986, Brygida Bziukiewicz, como exceção que era, tomou então diversos sustos quando foi convocada para as listas do Top 12 e do Top 5, no ano da vitoriosa Barbara Palácios, da Venezuela.
A loira polonesa que, por não conhecer a língua inglesa demorou bom tempo até perceber que estava selecionada para as semifinais (ela aplaudia tranquilamente quando a câmera a flagrou – agia como se outra candidata tivesse sido chamada por Bob Barker), acabou o concurso na 4ª. colocação.
Tamanha era a distância entre o Leste Europeu e os frívolos concursos de beleza.
Foi apenas em 1989, com a abertura política visando transparência (Glasnost) e a reconstrução econômica (Perestroika), ambas operadas pelo governo de Mikhail Gorbachev, que a URSS elegeu sua primeira miss. Ainda que não tenha participado do concurso Miss Universo daquele ano, esta coroação foi celebrada com imagens festivas, transmitida para todo o mundo via CBS, com um certo pendor de alívio.
O comentário subliminar era: “eles demoraram, mas reconheceram enfim que nossas instituições são melhores; agora eles também têm uma miss!”. A transmissão destas imagens, como destaque na programação televisiva, configurava com clareza também uma celebração de vitória americana na Guerra Fria contra os renitentes soviéticos. Era a vitória do poder brando, midiático, sem a necessidade de intervenções militares.
Mas, somente em 1990, com o retorno da Tchecoslováquia ao concurso e com a primeira aparição de uma Miss URSS, Evia Stalbovska, é que a tentativa de integração de fato se deu. Para não fugir à regra, o destaque foi dado a ambas as concorrentes. A soviética mereceu breve comentário por parte dos apresentadores (a câmera a destacou entre as 71 concorrentes, sob pedido de aplausos feito pela hostess Leeza Gibbons) e a tcheca Jana Hronkova figurou entre as semifinalistas do Top 10, ainda que com as médias mais baixas possíveis, em seus scores.
Para culminação da crise soviética, sua última aparição sob esta denominação se deu em 1991, com a problemática e belíssima Yulia Lemigova. Com uma elegância pouco afetada e uma simplicidade comovente, Yulia se destacou e terminou a competição na terceira colocação, em um dos Top 3 mais acirrados e surpreendentes da história do Miss Universo.
A história trágica de Lemigova, na sequencia, metaforiza o despreparo dos russos para a vida endinheirada. Casada com o banqueiro Edouard Stern, encontrado morto após uma malfadada sessão de sexo sadomasoquista (o corpo estava com roupas de látex), em seu apartamento de Genebra em 2005, ela também perdeu o seu filho aos 5 meses de idade. Ao que parece, uma babá búlgara o espancou e o deixou com ferimentos letais nos órgãos internos. Lemigova herdou uma fortuna, e muita tristeza.
Em 1992, já não existia mais URSS. Uma miss da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), Lidia Kuborskaya, representou sem êxito a antiga potência militar, que estava agora à beira do colapso. Neste ano, Hungria, Bulgária, Polônia estiveram presentes, com desistência da Iugoslávia.
A partir do ano seguinte, os estados independentes da ex-União Soviética ganharam território próprio no concurso: Estônia em 1993, Rússia em 1994 e Ucrânia em 1995; mas isso não significou reconhecimento internacional imediato de seus povos. Para participar do concurso de 1994, a russa Inna Zobova ficou detida, segundo a agência Reuters, por 15 horas seguidas em uma sala sem janelas no aeroporto de Bangkok, por falta de documentação necessária, antes de seguir para Manila, onde ocorreria o concurso.
As diferenças culturais e certos acirramentos subliminares entre antigos rivais ecoaram ainda por bom tempo, mesmo após o fim da Guerra Fria: quando, em 2002, Oxana Fedorova foi declarada a primeira russa vitoriosa no concurso Miss Universo, a aparente reaproximação dos mundos pouco ou nada durou. Por priorizar razões pessoais (e sob falsa acusação de gravidez), Oxana teve dificuldades para cumprir as exigências de sua agenda como Miss Universo e foi destronada – figurando até hoje como a única Miss Universo destituída da história.
Coincidências à parte, Oxana Fedorova – que venceu de cabo a rabo todas as etapas do concurso que disputou – foi substituída por Justine Pasek, uma representante do submisso canal do Panamá, país que é historicamente um território de dominação americana inquestionável. Desde então, e até hoje, não tem sido fácil o sucesso das russas nos concursos de Donald Trump.
Tirando a sorridente Vera Krasova, quarta colocada em 2008, nenhuma outra passou ao Top 5, desde Fedorova. Sofia Rudieva, uma das favoritas nas preliminares de 2009, evocada por sua “beleza russa perfeita por diversos especialistas”, sequer figurou no Top 15 (talvez por ter tirado fotos eróticas e parecer pouco afeita aos compromissos exigidos à detentora da coroa).
A possibilidade de redenção está agora nas mãos de Irina Antonenko. A exemplo de uma outra russa, Natalie Glebova, eleita Miss Universo ao representar o Canadá em 1995, Irina apresenta uma daquelas “belezas perfeitas”, que só não alcança as primeiras posições se houver algum tipo de intervenção política.
Nos concursos de uma organização secundária, de menor envergadura, intitulada Miss World, a Rússia não sofre tantas desventuras: venceu em 2006 com Ksenia Sukhinova e também em 1992, com Julia Kourotchkina. Mas o Miss World é uma organização inglesa, não norte-americana.
Isso, para os ares vindos da Guerra Fria, faz toda a diferença. Ainda hoje, uma russa vencer representando o Canadá soa mais natural do que o bombástico som russo sendo declarado vencedor.
Rima Fakih: guerra ao terror da Era Bush
Para surpresa geral, em uma noite em que as loiras dominaram os parâmetros de beleza, a escolha da Miss USA 2010 incidiu sobre Rima Fakih, única morena do Top 5. Libanesa de nascimento e representante do estado de Michigan, a simpática menina árabe de corpo e desfile arrasadores causou polêmica ao se tornar a primeira Miss USA descendente da beleza vigente no Oriente Médio.
Rima nunca figurou entre favoritas, durante as preliminares, e as bolsas de apostas tendiam para o “padrão de beleza Barbie”, especialmente voltadas para a fortíssima candidata de Oklahoma, Morgan Elizabeth Woolard, que terminou como segunda colocada; e para Kelsey Moore, uma texana jogadora de vôlei que embora badalada entre missólogos sequer figurou entre as semifinalistas do Top 15.
Na noite final, Jessica Hartman ofertou ao Colorado notas muito altas e parecia ser a opção dos jurados. Enquanto Colorado e Okhlahoma (e até uma estranha candidata altíssima do Maine, Katie Whittier) lideravam as pontuações das passarelas de biquíni e de trajes de gala, Rima conseguia apenas scores suficientes para a classificação à fase seguinte, praticamente na linha de corte (em 9º., para Swuimsuit Competition; em 4º. para Evening Gown Competition, mesmo com um tropicão no vestido, no momento da finalização).
Talvez tenha sido sua desenvoltura, na pergunta final, a responsável pela inesperada virada de mesa na opinião do júri. É bem verdade que a postura conservadora da sua principal rival, de Oklahoma, condenando imigrações (e Rima é uma imigrante árabe) e o excesso de tensão das respostas de Colorado e Maine colaboraram para que os holofotes ficassem então focados sobre Michigan.
Não se pode esquecer a extrema importância da pergunta final: no ano anterior, a favorita Miss Califórnia, Carrie Prejean, entregou a coroa nas mãos da baixinha Kristen Dalton (também badalada desde as prévias) ao pregar contra o casamento gay, na resposta à pergunta do jurado Perez Hilton.
Mas parece ter sido mesmo a busca de Donald Trump por uma candidata polêmica, capaz de reacender na mídia a fogueira de vaidades da beleza americana, que fez da carismática e incompreendida Rima a nova rainha da beleza estadunidense. Instantes após sua coroação, a imprensa estarrecida noticiou a vitória da beleza árabe sobre as Barbies, em plena era da Guerra do Terror.
Familiares de Rima Fakih ligados ao Hezbollah e mortos durante guerras recentes contra Israel foram desenterrados pelos jornais sensacionalistas e, nos dias seguintes, Rima teve que esclarecer sua postura nacionalista, apesar da beleza étnica pouco digestiva. Não bastassem as insinuações de que houvera pressão terrorista para que a coroa fosse parar na cabeça de uma árabe-americana vinda do Líbano, fotos sensuais de Rima praticando pole dancing (uma dancinha praticada nas boates pelas prostitutas) estamparam as páginas da internet e motivaram toda uma verdadeira inquisição, nos programas de entrevista a que Rima Fakih espertamente peregrinou, desde a TV aberta até os programas mais obscuros e fechados da TV paga.
Se Trump está querendo audiência e valorização do seu produto, de fato eleger Rima foi uma ação de marketing muito bem estruturada. Além de tocar na ferida aberta do espírito anti-terror destes tempos atuais, radicaliza a crítica aos padrões estéticos da era Bush, visando profunda modernização dos paradigmas do concurso. Curiosamente, neste ano, o apresentador da noite não foi o almofadinha Billy Bush, primo direto de George W. Bush, host do concurso de 2009.
Para surpresa geral, em uma noite em que as loiras dominaram os parâmetros de beleza, a escolha da Miss USA 2010 incidiu sobre Rima Fakih, única morena do Top 5. Libanesa de nascimento e representante do estado de Michigan, a simpática menina árabe de corpo e desfile arrasadores causou polêmica ao se tornar a primeira Miss USA descendente da beleza vigente no Oriente Médio.
Rima nunca figurou entre favoritas, durante as preliminares, e as bolsas de apostas tendiam para o “padrão de beleza Barbie”, especialmente voltadas para a fortíssima candidata de Oklahoma, Morgan Elizabeth Woolard, que terminou como segunda colocada; e para Kelsey Moore, uma texana jogadora de vôlei que embora badalada entre missólogos sequer figurou entre as semifinalistas do Top 15.
Na noite final, Jessica Hartman ofertou ao Colorado notas muito altas e parecia ser a opção dos jurados. Enquanto Colorado e Okhlahoma (e até uma estranha candidata altíssima do Maine, Katie Whittier) lideravam as pontuações das passarelas de biquíni e de trajes de gala, Rima conseguia apenas scores suficientes para a classificação à fase seguinte, praticamente na linha de corte (em 9º., para Swuimsuit Competition; em 4º. para Evening Gown Competition, mesmo com um tropicão no vestido, no momento da finalização).
Talvez tenha sido sua desenvoltura, na pergunta final, a responsável pela inesperada virada de mesa na opinião do júri. É bem verdade que a postura conservadora da sua principal rival, de Oklahoma, condenando imigrações (e Rima é uma imigrante árabe) e o excesso de tensão das respostas de Colorado e Maine colaboraram para que os holofotes ficassem então focados sobre Michigan.
Não se pode esquecer a extrema importância da pergunta final: no ano anterior, a favorita Miss Califórnia, Carrie Prejean, entregou a coroa nas mãos da baixinha Kristen Dalton (também badalada desde as prévias) ao pregar contra o casamento gay, na resposta à pergunta do jurado Perez Hilton.
Mas parece ter sido mesmo a busca de Donald Trump por uma candidata polêmica, capaz de reacender na mídia a fogueira de vaidades da beleza americana, que fez da carismática e incompreendida Rima a nova rainha da beleza estadunidense. Instantes após sua coroação, a imprensa estarrecida noticiou a vitória da beleza árabe sobre as Barbies, em plena era da Guerra do Terror.
Familiares de Rima Fakih ligados ao Hezbollah e mortos durante guerras recentes contra Israel foram desenterrados pelos jornais sensacionalistas e, nos dias seguintes, Rima teve que esclarecer sua postura nacionalista, apesar da beleza étnica pouco digestiva. Não bastassem as insinuações de que houvera pressão terrorista para que a coroa fosse parar na cabeça de uma árabe-americana vinda do Líbano, fotos sensuais de Rima praticando pole dancing (uma dancinha praticada nas boates pelas prostitutas) estamparam as páginas da internet e motivaram toda uma verdadeira inquisição, nos programas de entrevista a que Rima Fakih espertamente peregrinou, desde a TV aberta até os programas mais obscuros e fechados da TV paga.
Se Trump está querendo audiência e valorização do seu produto, de fato eleger Rima foi uma ação de marketing muito bem estruturada. Além de tocar na ferida aberta do espírito anti-terror destes tempos atuais, radicaliza a crítica aos padrões estéticos da era Bush, visando profunda modernização dos paradigmas do concurso. Curiosamente, neste ano, o apresentador da noite não foi o almofadinha Billy Bush, primo direto de George W. Bush, host do concurso de 2009.
sexta-feira, 18 de junho de 2010
E as coroas continuam submissas na Venezuela...
Na noite de 21 de maio de 1993, quando a venezuelana Milka Chulina, até então uma das francas favoritas ao título de Miss Universo, inflamou-se de forma incomum para responder a uma pergunta de caráter político, feita a ela no Top 6 do concurso (depois, no Top 3, ela ainda respondeu a outra perguntinha mais leve, mas também de modo veemente), manifestou uma forte e eloquente defesa da necessidade da democracia, em seu país.
E não o fez por acaso. Eram tempos difíceis, aqueles.
Ela, claramente, se referia ao impeachment do presidente Andrés Perez, decidido pelos tribunais da Venezuela na véspera de sua fala. Parecia ter, no discurso, vaga esperança de que o ato de deposição presidencial significasse a abertura de um portal para uma nova Pequena Veneza (significado do nome Venezuela), nos novos tempos: feitos de liberdade de expressão e de superação da corrupção vigente.
Chulina estava equivocada!
Não demoraria mais do que 5 anos até que, em 1998, o autoritarismo voltasse a rondar como fantasma a vida política de seu povo. Desta vez, com a figura esquerdista de Hugo Chávez, eleito para colocar em prática as suas popularíssimas missões bolivarianas – ações sociais que tiveram, de fato, forte impacto para a redução das descabidas diferenças econômicas históricas entre a elite e os trabalhadores.
Tudo isso, à custa de uma mão política pesada e mesmo pouco democrática – em sentido estrito. Isso já se podia sentir à época da eleição, quando o furacão Chávez engoliu as potencialidades políticas da Miss Universo 1981, Irene Saez, ativista e socióloga que chegou a governar a província de Nova Esparta e a prefeitura de Chacao.
Mais uma miss com boas intenções não consegue salvar a Venezuela do populismo egóico típico das ditaduras latinas...
Chávez, após a vitória, aproveitou-se da extrema popularidade com que levou a cabo seu governo e as ações assistencialistas de combate a doenças e de erradicação do analfabetismo, e, com isso, conseguiu prorrogar, até aqui de modo indefinido, o seu mandato. Sob forte traço de caráter autoritário, censurou meios de comunicação oposicionistas e levou à prisão até mesmo juízes que emitiram sentenças desfavoráveis aos seus interesses.
Mas, diante do pequeno revés sofrido em 2010, quando a ONU finalmente se manifestou contrária às suas ações totalitaristas, Chávez (sabedor do uso da política de pão-e-circo) se reaproximos das popularíssimas misses da quinta de Osmel Sousa – o mentor do concurso Miss Venezuela, mantido pelas Organizações Cisneros, junto à governista rede de TV Venevision.
Em busca de legitimidade, Chávez saiu à caça de ícones midiáticos favoráveis. Não demoraria a chegar até as misses... Os recordes de vitórias das misses venezuelanas as transformaram em mitos e elas são, por isso, uma propaganda e tanto das boas aparências!
Sobretudo por tantas razões antidemocráticas, 2009 definitivamente não foi um bom momento histórico para que a Venezuela emplacasse o seu esperado e sonhado back-to-back, único na história do concurso Miss Universo até ali, com as vitórias conquistadas, em 2 anos consecutivos, por Dayana Mendoza (2008) e Stefanía Fernandez (2009).
Para um país que faz dos certames de beleza sua especialidade e cujos concursos são mais populares do que o futebol, esses dois triunfos mundiais corroboram uma imagem de mídia fortíssima, uma visão paradisíaca que mostra a Venezuela sob o paradigma de um bom momento, apesar da miséria e da política abusada do cala-boca. Chávez faz uso político disso e ganha trunfos com estes triunfos.
Fato mais assustador do que este no “mundo miss”, para a nossa memória brasileira, somente a macabra vitória de Martha Vasconcellos, em 1968, no mesmo Miss Universo. Em plena ditadura militar, à sombra da elaboração do AI-5, a baiana trouxe o título e, com ele, mais argumentos de que o Brasil era um “país que dava certo”, vivia seu milagre vitorioso – era amá-lo ou deixá-lo!
É a isso que deve servir uma miss?
Bom... Discursos de misses nunca foram coisas muito levadas a sério! No caso de Milka Chulina, em 1993, a articulação vibrante “da Miss Venezuela que mais havia sofrido intervenções cirúrgicas em toda a história” teve, evidentemente, efeito nulo. Tanto para sua candidatura a Miss Universo (a coroa foi parar na cabeça da porto-riquenha Dayanara Torres – quem mandou meter-se com assuntos sérios?), quanto para a trajetória política de seu país, fadada, até aqui, ao centralismo repressor.
E as coroas continuam submissas à ordem truculenta da política latina.
Na noite de 21 de maio de 1993, quando a venezuelana Milka Chulina, até então uma das francas favoritas ao título de Miss Universo, inflamou-se de forma incomum para responder a uma pergunta de caráter político, feita a ela no Top 6 do concurso (depois, no Top 3, ela ainda respondeu a outra perguntinha mais leve, mas também de modo veemente), manifestou uma forte e eloquente defesa da necessidade da democracia, em seu país.
E não o fez por acaso. Eram tempos difíceis, aqueles.
Ela, claramente, se referia ao impeachment do presidente Andrés Perez, decidido pelos tribunais da Venezuela na véspera de sua fala. Parecia ter, no discurso, vaga esperança de que o ato de deposição presidencial significasse a abertura de um portal para uma nova Pequena Veneza (significado do nome Venezuela), nos novos tempos: feitos de liberdade de expressão e de superação da corrupção vigente.
Chulina estava equivocada!
Não demoraria mais do que 5 anos até que, em 1998, o autoritarismo voltasse a rondar como fantasma a vida política de seu povo. Desta vez, com a figura esquerdista de Hugo Chávez, eleito para colocar em prática as suas popularíssimas missões bolivarianas – ações sociais que tiveram, de fato, forte impacto para a redução das descabidas diferenças econômicas históricas entre a elite e os trabalhadores.
Tudo isso, à custa de uma mão política pesada e mesmo pouco democrática – em sentido estrito. Isso já se podia sentir à época da eleição, quando o furacão Chávez engoliu as potencialidades políticas da Miss Universo 1981, Irene Saez, ativista e socióloga que chegou a governar a província de Nova Esparta e a prefeitura de Chacao.
Mais uma miss com boas intenções não consegue salvar a Venezuela do populismo egóico típico das ditaduras latinas...
Chávez, após a vitória, aproveitou-se da extrema popularidade com que levou a cabo seu governo e as ações assistencialistas de combate a doenças e de erradicação do analfabetismo, e, com isso, conseguiu prorrogar, até aqui de modo indefinido, o seu mandato. Sob forte traço de caráter autoritário, censurou meios de comunicação oposicionistas e levou à prisão até mesmo juízes que emitiram sentenças desfavoráveis aos seus interesses.
Mas, diante do pequeno revés sofrido em 2010, quando a ONU finalmente se manifestou contrária às suas ações totalitaristas, Chávez (sabedor do uso da política de pão-e-circo) se reaproximos das popularíssimas misses da quinta de Osmel Sousa – o mentor do concurso Miss Venezuela, mantido pelas Organizações Cisneros, junto à governista rede de TV Venevision.
Em busca de legitimidade, Chávez saiu à caça de ícones midiáticos favoráveis. Não demoraria a chegar até as misses... Os recordes de vitórias das misses venezuelanas as transformaram em mitos e elas são, por isso, uma propaganda e tanto das boas aparências!
Sobretudo por tantas razões antidemocráticas, 2009 definitivamente não foi um bom momento histórico para que a Venezuela emplacasse o seu esperado e sonhado back-to-back, único na história do concurso Miss Universo até ali, com as vitórias conquistadas, em 2 anos consecutivos, por Dayana Mendoza (2008) e Stefanía Fernandez (2009).
Para um país que faz dos certames de beleza sua especialidade e cujos concursos são mais populares do que o futebol, esses dois triunfos mundiais corroboram uma imagem de mídia fortíssima, uma visão paradisíaca que mostra a Venezuela sob o paradigma de um bom momento, apesar da miséria e da política abusada do cala-boca. Chávez faz uso político disso e ganha trunfos com estes triunfos.
Fato mais assustador do que este no “mundo miss”, para a nossa memória brasileira, somente a macabra vitória de Martha Vasconcellos, em 1968, no mesmo Miss Universo. Em plena ditadura militar, à sombra da elaboração do AI-5, a baiana trouxe o título e, com ele, mais argumentos de que o Brasil era um “país que dava certo”, vivia seu milagre vitorioso – era amá-lo ou deixá-lo!
É a isso que deve servir uma miss?
Bom... Discursos de misses nunca foram coisas muito levadas a sério! No caso de Milka Chulina, em 1993, a articulação vibrante “da Miss Venezuela que mais havia sofrido intervenções cirúrgicas em toda a história” teve, evidentemente, efeito nulo. Tanto para sua candidatura a Miss Universo (a coroa foi parar na cabeça da porto-riquenha Dayanara Torres – quem mandou meter-se com assuntos sérios?), quanto para a trajetória política de seu país, fadada, até aqui, ao centralismo repressor.
E as coroas continuam submissas à ordem truculenta da política latina.
terça-feira, 15 de junho de 2010
Negro é lindo?
A Copa do Mundo de futebol de 2010, nas redondezas de Soweto, emocionou o mundo por criar novas imagens midiáticas historicamente decisivas, que revelaram amplas possibilidades de convívio entre brancos e negros em um país marcado pela experiência racista, sustentada pela lei. O poder simbólico da veiculação destes materiais nas mídias é, evidentemente, de valor inestimável!
Mas nem sempre a busca pela harmonia racial foi tomada como a opção econômica e política mais viável, na África do Sul – e no mundo! As elites colonialistas ali se implantaram e forjaram um mundo idealizado, macabramente platônico, em que a dominação do território africano se pautou pela exploração preconceituosa do negro, considerado social e esteticamente inferior.
Desde 1948, quando o regime de Apartheid (“separação”, em africânder) passou a vigorar com legitimidade jurídica, até a eleição de Nelson Mandela, em 1994, para o cargo de Presidente da República, o horror diário da humilhação condenou a maioria negra e pobre à relegada condição de sub-classe, com direitos civis restritos, e vitimada pelo consequente rebaixamento da auto-estima que faz o negro um sujeito, além de tudo, feioso.
Nos anos mais terríveis da Guerra Fria, numa época em que o Apartheid assumia seu caráter extremo, com o absurdo levado ao paroxismo, nada podia ter sido pior e mais conservador, do ponto de vista simbólico e midiático (político!), do que a escolha da branca Margaret Gardiner para a coroação como Miss Universo, em 1978. Uma Miss África do Sul branca e vitoriosa foi, certamente, um golpe brutal para as lutas por igualdade e pela ascensão da auto-estima negra.
Era uma imagem que se vendia ao mundo. E não ingenuamente...
A compensação conservadora era evidente e se mostrava ainda mais cruel porque vinha, no contra-fluxo modernizador do ano anterior, quando Janelle Comissiong, a elegantíssima Miss Trinidad & Tobago, foi declarada a primeira ganhadora negra da história do concurso mundial. Após um breve respiro multiculturalista, em que os padrões de beleza se desestabilizaram para apontar dinâmicas de renovação, a onda do mar do retrocesso engoliu a todos os que festejavam na areia da praia.
O fato de Gardiner ter sido, durante todas as etapas do concurso, uma concorrente apenas mediana, com notas pífias (era a primeira vez que os telespectadores podiam ver as notas recebidas pelas candidatas, graças às novas tecnologias!), e que chegou ao Top 5 como mera coadjuvante, amplia o teor de desconfiança das teorias conspiratórias. Sua vitória teve sabor de resposta autoritária, um cala-boca aos que se identificassem com as perigosas ideias progressistas.
Nos filmes hollywoodianos da época, o medo instaurado pelos anos da Guerra Fria justificava e oferecia apoio ao assassinato frio de negros, sem nenhuma justificativa plausível. O protagonista de Desejo de Matar (1974 e anos seguintes), por exemplo, fazia isso indiscriminadamente, em nome da lei; e com o requinte de vermos, ao final, o herói encarnado por Charles Bronson sendo absolvido pelos tribunais brancos de justiça.
Eram tempos difíceis. E era muito incomum assistirmos ao sucesso de uma miss negra, nos concursos de beleza. Ser negro estava (assim como ainda está) fora dos padrões aceitáveis/desejáveis. Uma Miss Haiti havia conquistado um surpreendente segundo lugar em 1975; outra Miss Curaçao também chegara perto da coroa em 1968; e as coisas paravam mais ou menos por aí!
Durante todos os anos 1980, pouquíssimas misses negras conquistaram vagas como semifinalistas (a Miss Brasil 1986, Deise Nunes, foi uma dessas exceções que confirmam a regra) e, curiosamente, foi somente após meados dos anos 1990 – sintomaticamente, quando o Apartheid é derrubado pela economia globalizada e declarado mundialmente imoral – que algumas misses negras conseguiram algum sucesso.
Anacronicamente, ainda em 1991, uma Miss Namíbia loira foi eleita Miss Universo! Beira o inacreditável... Especialmente porque Michelle McLean era, apesar de loira, definitivamente, feia e aguada!
Entretanto, com a chegada multicultural, as imagens da cultura da mídia foram se modificando: a Miss USA 1995, Chelsi Smith; também a Miss Trinidad & Tobago 1998, Wendy Fitzwilliam; e a Miss Botswana 1999, Mpule Kwelagobe consagraram-se e venceram o Miss Universo em concursos praticamente consecutivos, logo após a queda do Apartheid.
Ainda assim, mesmo nas condições críticas de hoje, essas são misses que são vítimas de constante deboche nas comunidades temáticas das redes sociais contemporâneas, xingadas, dentre outros nomes pouco lisonjeiros, de “macacas”. E é mais comum vermos negras figurarem apenas enquanto cota racial nos Tops dos concursos, numa atitude meramente protocolar. Não é raro, contudo, receberem, como prêmio de consolação indesejável, o troféu de Miss Simpatia, ofertado cinicamente pela piedosa e esmagadora maioria de misses brancas – inclusive aquelas que representam países cujos povos são formados por maiorias negras, mestiças ou índias.
Como nos ensinou o estudioso Douglas Kellner, em seu clássico A Cultura da Mídia: “Nos anos 1990, muitos dos novos discursos teóricos alinharam-se sob o rótulo de ‘multiculturalismo’. Afirmavam a alteridade e a diferença, bem como a importância de atender aos grupos marginalizados, minoritários e contestadores, antes excluídos do diálogo cultural. O multiculturalismo provocou novas guerras culturais, uma vez que, contra a ofensiva multicultural, os conservadores defenderam a cultura ocidental clássica, com seus cânones ditados por grandes homens europeus (sobretudo). Opondo-se ao multiculturalismo, os conservadores (re)afirmavam o monoculturalismo, provocando um novo round de intensas guerras entre teorias e culturas, guerras que ainda estão sendo travadas”.
É triste. Muito triste. Mas não podemos deixar de ver... E muitas delas são tão lindas!
A Copa do Mundo de futebol de 2010, nas redondezas de Soweto, emocionou o mundo por criar novas imagens midiáticas historicamente decisivas, que revelaram amplas possibilidades de convívio entre brancos e negros em um país marcado pela experiência racista, sustentada pela lei. O poder simbólico da veiculação destes materiais nas mídias é, evidentemente, de valor inestimável!
Mas nem sempre a busca pela harmonia racial foi tomada como a opção econômica e política mais viável, na África do Sul – e no mundo! As elites colonialistas ali se implantaram e forjaram um mundo idealizado, macabramente platônico, em que a dominação do território africano se pautou pela exploração preconceituosa do negro, considerado social e esteticamente inferior.
Desde 1948, quando o regime de Apartheid (“separação”, em africânder) passou a vigorar com legitimidade jurídica, até a eleição de Nelson Mandela, em 1994, para o cargo de Presidente da República, o horror diário da humilhação condenou a maioria negra e pobre à relegada condição de sub-classe, com direitos civis restritos, e vitimada pelo consequente rebaixamento da auto-estima que faz o negro um sujeito, além de tudo, feioso.
Nos anos mais terríveis da Guerra Fria, numa época em que o Apartheid assumia seu caráter extremo, com o absurdo levado ao paroxismo, nada podia ter sido pior e mais conservador, do ponto de vista simbólico e midiático (político!), do que a escolha da branca Margaret Gardiner para a coroação como Miss Universo, em 1978. Uma Miss África do Sul branca e vitoriosa foi, certamente, um golpe brutal para as lutas por igualdade e pela ascensão da auto-estima negra.
Era uma imagem que se vendia ao mundo. E não ingenuamente...
A compensação conservadora era evidente e se mostrava ainda mais cruel porque vinha, no contra-fluxo modernizador do ano anterior, quando Janelle Comissiong, a elegantíssima Miss Trinidad & Tobago, foi declarada a primeira ganhadora negra da história do concurso mundial. Após um breve respiro multiculturalista, em que os padrões de beleza se desestabilizaram para apontar dinâmicas de renovação, a onda do mar do retrocesso engoliu a todos os que festejavam na areia da praia.
O fato de Gardiner ter sido, durante todas as etapas do concurso, uma concorrente apenas mediana, com notas pífias (era a primeira vez que os telespectadores podiam ver as notas recebidas pelas candidatas, graças às novas tecnologias!), e que chegou ao Top 5 como mera coadjuvante, amplia o teor de desconfiança das teorias conspiratórias. Sua vitória teve sabor de resposta autoritária, um cala-boca aos que se identificassem com as perigosas ideias progressistas.
Nos filmes hollywoodianos da época, o medo instaurado pelos anos da Guerra Fria justificava e oferecia apoio ao assassinato frio de negros, sem nenhuma justificativa plausível. O protagonista de Desejo de Matar (1974 e anos seguintes), por exemplo, fazia isso indiscriminadamente, em nome da lei; e com o requinte de vermos, ao final, o herói encarnado por Charles Bronson sendo absolvido pelos tribunais brancos de justiça.
Eram tempos difíceis. E era muito incomum assistirmos ao sucesso de uma miss negra, nos concursos de beleza. Ser negro estava (assim como ainda está) fora dos padrões aceitáveis/desejáveis. Uma Miss Haiti havia conquistado um surpreendente segundo lugar em 1975; outra Miss Curaçao também chegara perto da coroa em 1968; e as coisas paravam mais ou menos por aí!
Durante todos os anos 1980, pouquíssimas misses negras conquistaram vagas como semifinalistas (a Miss Brasil 1986, Deise Nunes, foi uma dessas exceções que confirmam a regra) e, curiosamente, foi somente após meados dos anos 1990 – sintomaticamente, quando o Apartheid é derrubado pela economia globalizada e declarado mundialmente imoral – que algumas misses negras conseguiram algum sucesso.
Anacronicamente, ainda em 1991, uma Miss Namíbia loira foi eleita Miss Universo! Beira o inacreditável... Especialmente porque Michelle McLean era, apesar de loira, definitivamente, feia e aguada!
Entretanto, com a chegada multicultural, as imagens da cultura da mídia foram se modificando: a Miss USA 1995, Chelsi Smith; também a Miss Trinidad & Tobago 1998, Wendy Fitzwilliam; e a Miss Botswana 1999, Mpule Kwelagobe consagraram-se e venceram o Miss Universo em concursos praticamente consecutivos, logo após a queda do Apartheid.
Ainda assim, mesmo nas condições críticas de hoje, essas são misses que são vítimas de constante deboche nas comunidades temáticas das redes sociais contemporâneas, xingadas, dentre outros nomes pouco lisonjeiros, de “macacas”. E é mais comum vermos negras figurarem apenas enquanto cota racial nos Tops dos concursos, numa atitude meramente protocolar. Não é raro, contudo, receberem, como prêmio de consolação indesejável, o troféu de Miss Simpatia, ofertado cinicamente pela piedosa e esmagadora maioria de misses brancas – inclusive aquelas que representam países cujos povos são formados por maiorias negras, mestiças ou índias.
Como nos ensinou o estudioso Douglas Kellner, em seu clássico A Cultura da Mídia: “Nos anos 1990, muitos dos novos discursos teóricos alinharam-se sob o rótulo de ‘multiculturalismo’. Afirmavam a alteridade e a diferença, bem como a importância de atender aos grupos marginalizados, minoritários e contestadores, antes excluídos do diálogo cultural. O multiculturalismo provocou novas guerras culturais, uma vez que, contra a ofensiva multicultural, os conservadores defenderam a cultura ocidental clássica, com seus cânones ditados por grandes homens europeus (sobretudo). Opondo-se ao multiculturalismo, os conservadores (re)afirmavam o monoculturalismo, provocando um novo round de intensas guerras entre teorias e culturas, guerras que ainda estão sendo travadas”.
É triste. Muito triste. Mas não podemos deixar de ver... E muitas delas são tão lindas!
domingo, 13 de junho de 2010
As Torres Gêmeas
Se há algum espelho da História presente nos concursos de miss, ele certamente não reflete, com mero embelezamento, os fatos. Os horrores vividos no tempo histórico são, um a um, convocados e trazidos à passarela – mas sempre pelo viés do absurdo, ou da ironia.
E foi assim, com esgares de absurdo e de ironia, que Osama bin Laden teve que esperar pelo cabalístico número de 7 anos para ver espelhada, nos concursos de miss, a sua grandiloqüente performance multimidiática de desmoronamento dos falos duros da economia estadunidense.
Quando a negra Cristle Stewart (que passara anos lutando e sendo derrotada em concursos menores para chegar, enfim, a carregar a faixa USA) caiu de bunda no chão do desfile de trajes de gala do Miss Universo 2008, fazia aproximadamente 7 anos que as torres gêmeas haviam desabado.
Não por acaso (o espírito do tempo brinca tão sorrateiro com essas ironias!), no ano anterior, durante o mesmo desfile de EG (Evening Gown Competition) do Miss Universo 2007, outra afro-descendente norte-americana havia derrubado suas reais chances de vitória ao espatifar-se, também esquentando as nádegas, na fase mais elegante do concurso.
Ela era Rachel Smith, uma simpática Miss Tennessee que Donald Trump elegeu Miss USA. E que garimpou, mesmo após sua dolorosa queda (seguida de um emblemático sorriso digno de nota – mesmo com o derrière latejante –, após a rápida levantadinha), uma aguerrida classificação para as finais (ou Top 5).
Tudo isso ocorreu sob constrangedoras vaias de uma multidão presente na platéia – e que assistira a sua fraca candidata parar no Top 10, perdendo a vaga justamente para a decaída Smith. Os anfitriões mexicanos que, para além do ódio ao país vizinho (cultivado por razões econômicas óbvias, que envolvem muros nas fronteiras e clara xenofobia latina), protagonizaram uma das melhores demonstrações de rejeição à era Bush Filho, em rede mundial de TV aberta.
No ano seguinte, quando Cristle Stewart despencou, os jurados não foram tão lenientes. Afinal, estávamos do Vietnam – e não pega bem, justo ali, ser condescendente com o peso da faixa USA. A moça parou no Top 10 (a fraquíssima Miss Vietnam já tinha interrompido as esperanças no Top 15), metaforizando a melancólica queda da segunda torre de 11 de setembro de 2001.
Quando a primeira caiu, ficamos estarrecidos com o acontecimento. Quando a segunda, de modo simétrico, mostrou como a realidade pode verdadeiramente copiar a ficção (sobretudo o cinema!), não imaginávamos poder ver um incômodo repeteco, diante do mundo via NBC, e agora tão divertido, nas passarelas mais fúteis da mídia contemporânea.
Como escreveu Jean Baudrillard sobre as Twin Towers (Donald Trump também tem suas duas torres luxuosas): “Imaginem se elas não tivessem desabado, ou que apenas uma delas desabasse, o efeito não seria de modo algum o mesmo. A prova gritante da fragilidade da potência mundial não teria sido a mesma”.
Se há algum espelho da História presente nos concursos de miss, ele certamente não reflete, com mero embelezamento, os fatos. Os horrores vividos no tempo histórico são, um a um, convocados e trazidos à passarela – mas sempre pelo viés do absurdo, ou da ironia.
E foi assim, com esgares de absurdo e de ironia, que Osama bin Laden teve que esperar pelo cabalístico número de 7 anos para ver espelhada, nos concursos de miss, a sua grandiloqüente performance multimidiática de desmoronamento dos falos duros da economia estadunidense.
Quando a negra Cristle Stewart (que passara anos lutando e sendo derrotada em concursos menores para chegar, enfim, a carregar a faixa USA) caiu de bunda no chão do desfile de trajes de gala do Miss Universo 2008, fazia aproximadamente 7 anos que as torres gêmeas haviam desabado.
Não por acaso (o espírito do tempo brinca tão sorrateiro com essas ironias!), no ano anterior, durante o mesmo desfile de EG (Evening Gown Competition) do Miss Universo 2007, outra afro-descendente norte-americana havia derrubado suas reais chances de vitória ao espatifar-se, também esquentando as nádegas, na fase mais elegante do concurso.
Ela era Rachel Smith, uma simpática Miss Tennessee que Donald Trump elegeu Miss USA. E que garimpou, mesmo após sua dolorosa queda (seguida de um emblemático sorriso digno de nota – mesmo com o derrière latejante –, após a rápida levantadinha), uma aguerrida classificação para as finais (ou Top 5).
Tudo isso ocorreu sob constrangedoras vaias de uma multidão presente na platéia – e que assistira a sua fraca candidata parar no Top 10, perdendo a vaga justamente para a decaída Smith. Os anfitriões mexicanos que, para além do ódio ao país vizinho (cultivado por razões econômicas óbvias, que envolvem muros nas fronteiras e clara xenofobia latina), protagonizaram uma das melhores demonstrações de rejeição à era Bush Filho, em rede mundial de TV aberta.
No ano seguinte, quando Cristle Stewart despencou, os jurados não foram tão lenientes. Afinal, estávamos do Vietnam – e não pega bem, justo ali, ser condescendente com o peso da faixa USA. A moça parou no Top 10 (a fraquíssima Miss Vietnam já tinha interrompido as esperanças no Top 15), metaforizando a melancólica queda da segunda torre de 11 de setembro de 2001.
Quando a primeira caiu, ficamos estarrecidos com o acontecimento. Quando a segunda, de modo simétrico, mostrou como a realidade pode verdadeiramente copiar a ficção (sobretudo o cinema!), não imaginávamos poder ver um incômodo repeteco, diante do mundo via NBC, e agora tão divertido, nas passarelas mais fúteis da mídia contemporânea.
Como escreveu Jean Baudrillard sobre as Twin Towers (Donald Trump também tem suas duas torres luxuosas): “Imaginem se elas não tivessem desabado, ou que apenas uma delas desabasse, o efeito não seria de modo algum o mesmo. A prova gritante da fragilidade da potência mundial não teria sido a mesma”.
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