quinta-feira, 22 de julho de 2010

Batalha latina

A constante crise de relações internacionais entre Venezuela e Colômbia esconde velhas rivalidades que raramente se tornam evidentes. A acusação de que o governo de Hugo Chávez dá abrigo, em território venezuelano, para as FARCs colombianas já geraram diversos desconfortos políticos naquela vizinhança.



Para a Venezuela, sem que isso seja explicitamente colocado diante dos ouvidos do mundo, as guerrilhas não configuram forças terroristas e contam com certa simpatia dos governos latinos de tendência esquerdista. A troca de acusações é tão grave que já chegou à ONU e motivou a recente ruptura diplomática.

Mas nunca esta antiga rixa esteve tão fácil de ser percebida quanto no seu espelhamento, visto na final do concurso Miss Universo de 2008. Aqui as disputas são mais pacíficas – e quase nunca verdadeiramente politizadas –, mas dão o tom bélico do confronto de potências (sim, Venezuela e Colômbia são duas das maiores potências do Mundo Miss.




Em 2008, a vitória da veneca Dayana Mendoza (“boneca venezuelana” que representara antes, no concurso local, o estado do Amazonas) sobre a colombiana Taliana Vargas (que liderara toda a competição contra a divertidíssima Dayana, perdendo apenas nos instantes finais) desperta antigas contendas entre os dois países que têm os concursos de beleza mais populares da América do Sul.

Com transmissão popularíssima, capaz de competir com certames de futebol, o envolvimento da população é enorme, o que faz com que estes concursos derivem em programas de TV de altíssima audiência e que, por isso, são muito lucrativos.

Os colombianos há décadas esperam repetir o feito de Luz Marina Zuluaga, Miss Universo de 1958. Desde então, nunca mais sagraram-se vitoriosos. Isso cria um conhecido complexo de inferioridade diante da Venezuela, maior ganhador de coroas da fase moderna do concurso. Desde 1979 até 2009, ganharam 6 coroas e apenas em 4 ocasiões não estiveram nos tops de semifinalistas.



Para piorar o quadro, algumas vitórias importantes da Venezuela ocorreram logo após algumas “bolas na trave” da faixa colombiana: quando a popstar Alicia Machado foi declarada vencedora em 1996, a Colômbia acumulava 3 recentes frustrações, na segunda colocação. Paola Turbay Gómez em 1992, Paula Andrea Betancur em 1993 e Carolina Gómez Correa em 1994.

Nestes anos intermediários, a rivalidade atingia picos, com os terceiros lugares venezuelanos em anos de vice-campeonatos colombianos. Em 1993, Milka Chulina foi indevidamente abatida como terceira colocada; e em 1994 Minorka Mercado sofreu a mesma injustiça, figurando somente no terceiro lugar. Em ambos os casos, como dissemos acima, terminaram apenas uma posição atrás da Colômbia.



Também quando saiu o primeiro título venezuelano para Maritza Sayalero, em 1979, a Colômbia vinha de 2 quartos lugares seguidos, com Mary Shirley Sáenz em 1978 e com Aura Maria Mojica Salcedo em 1977.

Mas uma grande chance desperdiçada pela Colômbia foi mesmo com Maria Mónica Urbina, em 1986. A morena de olhos verdes tropeçou nas escadarias e findou na terceira colocação, justamente num ano em que a Venezuela voltava a se consagrar com a coroa da show-woman Bárbara Palácios Teyde.



Para compensar um pouco a balança, a Colômbia acumula um número expressivo de prêmios de consolação, com 6 vitórias no prêmio de Melhor Traje Típico (1968, 1985, 1990, 1991, 1997 e 2002) versus nenhuma vitória venezuelana neste setor. Mas suas 4 terceiras colocações e seus 4 vice-campeonatos sequer se aproximam dos resultados venezuelanos: 6 segundas colocações, 4 terceiras e o recorde de emplacar semifinalistas por 21 anos seguidos, de 1983 até 2003.

Em 2010, as esperanças colombianas estão concentradas na fortíssima candidata Natália Navarro, que sucede a péssima representação realizada por Michelle Rouillard (a marcha mais agressiva dos desfiles dos últimos anos). Os venezuelanos chegam com Marelisa Gibson, que tem a missão impossível de tentar a vitória na seqüência do back-to-back de Dayana Mendoza (2008) e Stefanía Fernandez (2009).

Independente dos próximos resultados, ambos os países figurarão nos mapas de importância do concurso (juntamente com as expressivas colocações de México, Porto Rico, República Dominicana e Trinidad & Tobago), que destacam mulheres latinas como maiores vencedoras das competições recentes.



Tanto para Colômbia quanto para Venezuela, a atenção redobrada aos passos e às escolhas do principal opositor – e vizinho de fronteiras – se faz com transmissão internacional de seus concursos um para o outro, já que ambos compartilham a mesma língua e podem acompanhar com detalhe as estratégias sofisticadas que dão a eles o seu “peso de faixa”.
Globalização

Num mundo interligado, em que as informações se transmitem com uma freqüência assombrosa e a possibilidade de trânsito através das fronteiras dos países (apesar das políticas de imigração cada vez mais intolerantes) ter alcançado uma dimensão historicamente inédita, o concurso Miss Universo espelha esta condição que faz do homem contemporâneo um sujeito do mundo.



Se uma libanesa como Rima Fakih vence o concurso de Miss USA 2010 e estabelece uma enorme polêmica em torno da escolha de uma beleza árabe para representar os Estados Unidos, é porque as sociedades atuais (e especialmente a norte-americana) são cada vez mais híbridas, dependentes dos trânsitos de imigração e permitem que muitos escolham de que localidade preferem ter cidadania.

Também a Miss USA 2007 (protagonista do primeiro e ironizado tombo das “torres gêmeas”), Rachel Smith, nasceu fora das fronteiras de seu país: seus pais moraram no Panamá, onde ela nasceu enquanto eles prestavam serviços à nação. A rigor, sua nacionalidade é norte-americana, embora seu nascimento seja latino.

Laura Martinez-Herring, Miss USA 1985, é nascida no México. Não vem ao caso, aqui, lembrar minuciosamente todos os horrores vivenciados na fronteira destes dois países. O que é inegável é a tremenda presença e influência de mexicanos legais ou ilegais na vida norte-americana, especialmente ao sul.




Outros casos menos emblemáticos podem ser lembrados, em escala crescente, mesmo naquelas que são cidadãs estadunidenses por nascença. Em 2003, Susie Castillo consagrou sua ascendência porto-riquenha e também elegeu-se Miss USA. Em 2009, a quarta colocada, vinda do estado de Utah, Laura Kirilova Chukalov, exibiu sua ascendência búlgara de beleza estonteante e esteve próxima de ameaçar o sucesso da vitoriosa Kristen Dalton.

Mas também fora dos Estados Unidos a participação de estrangeiras é cada vez mais determinante nos resultados obtidos pelos países, no concurso Miss Universo. O caso mais famoso é o da russa naturalizada canadense Natalie Glebova, eleita Miss Universo portando no peito a faixa do Canadá, em 2005.



Sua vocação globalizada é tamanha que, nas viagens de seu reinado, Glebova se identificou profundamente com a Tailândia (onde foi eleita), para onde voltou diversas vezes. Aderiu à fé local, terminando por casar-se com o astro do tênis tailandês, Paradorn Srichaphan.

No ano de 2009, o Canadá tentou replicar o sucesso obtido em 2005. Mas não teve êxito internacional a escolha da brasileira Mariana Valente para representá-los. Mariana, a exemplo da potiguar Larissa Costa, que representava o Brasil e aparecia como favorita nas votações de internautas, não conseguiram nenhuma classificação.



Em 2010, o concurso canadense resolveu novamente concentrar suas apostas em uma "estrangeira": Elena Semikina, a altíssima miss nascida em Moldova no ano de 1984 foi escolhida para representar, com sua imagem globalizada, a beleza que nos anos 1980 chegou à coroa através de Karen Baldwin, esta sim nascida em Ontário.



E até mesmo no “país das misses” os organizadores e preparadores de beldades tiveram que se render à lógica globalizada: apontada como favorita pelas bolsas de apostas do mesmo concurso de Semikina, a representante das Filipinas, Vênus Raj, trás uma memória de miséria e privações. Nascida em Doha, capital do Qatar, aproveita o processo de mundialização da beleza para se impor ao Universo.

O próprio Donald Trump já deu entrevista defendendo que o concurso se abra cada vez mais à experiência da globalização e às trocas culturais. O fato de ser um concurso internacional, realizado sob diferentes línguas e culturas sempre fez com que a vitoriosa fosse vista como embaixatriz do mundo sem fronteiras.
Paraísos turísticos

Ano após ano, o desfile de trajes típico da Parada das Nações do concurso Miss Universo está repleto de candidatas que representam pequenas repúblicas de pouca ou nenhuma expressão no cenário internacional. Invariavelmente, desaparecem em seguida no coro de muitas candidatas, não obtêm classificações importantes e têm, neste primeiro desfile, o único espaço para sua aparição.



Então, uma pergunta inevitável se faz: por que enviam, todos os anos, suas meninas para concorrerem, sem muita chance de sucesso (elas quase nunca estão em acordo com os exigentes padrões estéticos de altura, peso e etiqueta internacionais), países insulares como Turks & Caicos, Reunião ou Cayman?

A resposta filantrópica, apesar de sedutora, não parece ser a mais esperta: de fato, não deve ser para que uma de suas belas garotas consiga um passaporte vip para um intercâmbio de luxo com outras civilizações e culturas, conheça o exterior e adquira um tipo de conhecimento de outra forma inalcançável para sua população quase sempre pobre.


Os dias de princesa de um concurso deste nível realmente existem: visitas a museus, roupas caras e hotel de luxo, além de uma rotina estressante de ensaios e entrevistas, passeios sempre vigiados por câmeras e sorrisos – ainda que forçados – para sair bem na transmissão mundial. Contudo, as razões políticas para a manutenção deste caro empreendimento é outro, muito mais ligado à economia do que à filantropia ou à cultura.

Durante os anos 1980, quando as misses ainda tinham voz própria para falar com a platéia ao vivo, nas Paradas das Nações coreografadas com riqueza e narradas por Bob Barker, a explicação era mais visível: as misses aproveitavam o instante de fama para falar ao mundo que vinham de ilhas paradisíacas, cheias de atrativos turísticos que viam na transmissão em rede mundial um bom espaço de divulgação.

Uma classificação para um top, como aconteceu com Thilda Fuller, Miss Tahiti 1980 ou com Tatiana Teraiamano, a nervosa e despreparada (além de belíssima) representante das mesmas ilhas em 1981; era já um evento memorável para a propaganda turística de um pequeno país como este (à época, Tahiti ainda não era considerado território francês).

Antigua & Barbuda, Mauritius, Barbados, Martinica e muitos outros destinos de viagem nunca conseguiram emplacar sequer um Top ou um prêmio de consolação. Mas em anos consecutivos enviaram candidatas e viram nisso uma oportunidade rara de divulgação. Alguns discursos das misses comprovam esta tese. Não raro, durante a Parada das Nações, quando não podiam ser cortadas (isso era ao vivo, antigamente), elas desembestavam a falar dos adjetivos ensolarados, hospitaleiros e tropicais de suas pequenas e desconhecidas pátrias.


Até mesmo as ilhotas caribenhas de Bahamas, paraíso que já teve inclusive a honra de sediar o concurso, incorrem no exemplo clássico e nunca conseguiram uma única classificação em todas as edições do torneio. Um prêmio de Miss Simpatia e outra consolação acolá. Nada mais para as Bahamas...

Em ocasiões excepcionais, como a confirmar a regra, uma ou outra chegava longe. Algumas, de tempos em tempos, chegaram à segunda colocação, mas nunca à vitória. Em 1982, Patty Chong Kerkos, uma pequenina Miss Guam de traços polinésios chegou à final com notas altíssimas, mas foi derrotada por uma canadense. Guam nunca ficou tão conhecida e jamais chegou tão perto da coroa.

Casos semelhantes ocorreram com a Miss Bermuda de 1979, Gina Swaison – que após perder no último momento a coroa, foi eleita Miss Mundo, tão bela que era; ou com Taryn Scheryl Mansell, Miss Aruba 1996. Ambas perderam seus títulos para venezuelanas, em decisões consideradas polêmicas por defensores da beleza incomum, nativa, fora dos padrões Barbie. Também Yendi Phillips, Miss Jamaica 2010, foi derrotada pela mexicana Jimena Navarrete após ter se destacado durante toda a competição e ter somado a maior pontuação do concurso.



Nestes exemplos, embora a frustrante derrota possa ter trazido amargos sabores aos que enxergam os concursos como espaços de exaltação da beleza feminina, a vitória comercial dá ao empreendimento turístico um fôlego novo, que faz com que, ainda hoje, quando as misses não podem mais falar o que bem querem ao vivo e mundialmente, estes investimentos continuem sendo considerados lucrativos.

Para os mais intransigentes, tais resultados indicam posturas intolerantes e até racistas. Para os que transigem com o marketing, as estratégias contam outras histórias, de final feliz mesmo nas mais árduas derrotas.


A Independência do Kosovo


A afirmação da independência política de uma jovem nação envolve a produção de signos que atinjam, com seu poder simbólico de impacto, tanto o imaginário de seu povo (que passa a cultuar figuras heróicas associadas à libertação de forças históricas opressoras), internamente, quanto a comunidade internacional, que precisa reconhecer os direitos da nova demarcação de fronteiras, e que também é afetada pela construção de valores positivos ligados ao novo país.

A recente proclamação de independência do Kosovo, a partir de sua capital Pristina, em fevereiro de 2008, tem exigido que a nova república, mais um fragmento da implosão étnico-religiosa da antiga Iugoslávia, realize esforços para sua afirmação.


Embora a Corte Internacional de Justiça, máxima instância judicial da ONU tenha declarado em Haia, a 22 de julho de 2010, que não houve violação de direitos humanos neste processo de libertação, e 69 países já tenham reconhecido o país até esta data (inclusive Estados Unidos, Japão e 22 membros da Comunidade Européia), há ainda um número grande de países que não reconheceram diplomaticamente a existência livre kosovar (dentre eles, todos os BRICs – Brasil, Rússia, Índia e China).

Mesmo assim, ou justamente por estas razões, já desde 2008 o Kosovo tem enviado misses como estratégia de representação cultural e política no programa de TV, aberto mundialmente, que é o Miss Universo. Duas edições já se foram e o Kosovo alcançou raro destaque, em tão pouco tempo.



A despeito dos interesses comerciais, excepcionalmente ativados em um momento de indefinições políticas, e que fazem com que emissoras de TV do porte da NBC de Donald Trump queiram rápida aproximação, as estratégias de produção de símbolos patrióticos de Kosovo têm demonstrado ótimo faro de marketing e eficácia indiscutível.

Ao se apropriarem de imagens consagradas pelo cinema, as primeiras misses kosovares desfilaram como verdadeiras citações a ícones da cultura pop e representaram, diante do mundo, a beleza exótica de um povo novo. Mas um povo cuja mitologia se faz com imagens pop.

Zana Krasniqi, a primeira miss Kosovo da História, procurou clonar com seu rosto impactante, a beleza comercialmente consagrada de Angelina Jolie. Não fosse um corpo um pouco pesado para os parâmetros do concurso, teria ido mais longe do que o excelente Top 10 conquistado com seu desfile erotizado, cheio de lábios carnudos, sorrisos malignos e olhares penetrantes.



Como também é comum que misses de países estreantes consigam classificação (ainda que não merecida), Zana não causou a mesma surpresa que sua sucessora, Marigona Dragusha, representante de 2009. Para além de seu exotismo inquestionável, Gona surpreendeu os jurados em seu desfile de traje de noite com uma clonagem de Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany´s, 1961). Desde o penteado retrô até a escolha elegante do vestido, a moça veio com a personalidade marcante de um verdadeiro ícone.

Num ano em que a vitória resultou para uma venezuelana (Stefanía Fernandez) também cinematograficamente vestida com sua latinidade, Gona alcançou o Top 5 com notas altíssimas vindas dos jurados (9.250 pontos) e terminou o concurso como terceira colocada em 2009.



Muitas antigas repúblicas soviéticas têm tentado produzir imagens mundiais no futebol, em sua produção cultural e também em concursos de misses. No concurso Miss Universo, vários novos países conseguiram destaques relativos, como Eslovênia, Ucrânia, Letônia, República Tcheca, Eslováquia etc. Da antiga Iugoslávia, todos os países já tiveram classificações nos tops, com exceção da Bósnia (muito possivelmente como conseqüência da guerra brutal que arrasou sua população majoritariamente muçulmana) Mas nenhum obteve, em tão pouco tempo, a proeminência que o Kosovo (este “campo dos melros” das misses) conseguiu.



Para 2010, Keshtjella Pepshi chega ao concurso com uma tarefa patriótica e tanto. Assim como a venezuelana Marelisa Gibson tem a missão quase impossível de trazer o tri (a Venezuela é a única bicampeã da história da competição), Pepshi corre atrás de um resultado tão bom quanto suas antecessoras, para contribuir para a divulgação internacional de sua pátria.