segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O topless e o maiô



Enquanto notícias corriam pela internet dando conta de que, pela primeira vez na história do concurso Miss Universo, 4 candidatas apresentavam suas fotos oficiais em um discreto topless, diante do cobiçadíssimo fotógrafo Fadil Berisha, as contradições se marcavam com contundência ainda mais gritante quando, na mesma competição, a Miss Indonésia 2010, uma jovem de 18 anos chamada Qory Sandioriva, recusava-se a vestir biquíni, considerado vestimenta imprópria pela religião islâmica praticada por aproximadamente 80% das pessoas de seu país.

Em respeito às tradições de seu povo, Qory Sandioriva foi fotografada com um ousado maiô, já que a religião muçulmana na Indonésia não seja tão fechada e radical quanto na maioria dos países árabes. Em geral, estes regimes teocráticos sequer permitem o envio de misses a eventos como estes e vivenciam fortes polêmicas quando a moda local indica, por exemplo, a solução do burkíni (uma pequena burka para a praia, muito adotado pelas mulheres árabes) para o lazer em áreas públicas, pois mesmo estes trajes são considerados já bastante avançadinhos.




Entretanto, mesmo algumas representantes vindas de países de tradição islâmica mais aberta, e que efetivamente enviam candidatas regularmente ao mesmo concurso, não costumam criar resistência ao biquíni e se enquadram sem problemas ao padrão ocidental praticado como dominante. As misses Egito, Turquia e Líbano de 2010, por exemple, mostraram seus corpos do mesmo modo que as demais candidatas, provavelmente tentando aparentar não haver barreiras religiosas para o desempenho até a vitória.

E isso é bastante importante, uma vez que o tema é recorrente e novamente foi abordado na Pergunta Final de 2010, prova decisiva realizada no finalíssimo Top 5, e destinada por sorteio à Miss Austrália, Jesinta Campbell. A aparência libertária, construída com cabelos desarranjados e atuais, contou pontos para dar a ela a terceira colocação no ranking decisivo, ao responder que os biquínis podem e devem ser usados em nome da liberdade de escolha da mulher contemporânea.



Contudo, misses ocidentais que trazem marcas no corpo, sejam cicatrizes ou tatuagens, gordurinhas extra ou estrias abdominais, procuram sempre esconder estas “imperfeições”. E, não raro, também desfilam de maiô, desafiando o coro. Suas razões, evidentemente, nunca são declaradas, pois revelariam o teor de ambigüidades atuantes num concurso deste porte – que em seu período clássico tinha o maiô como ícone, até os anos 1980. De lá pra cá, muita coisa mudou, e hoje só se veste maiô por razões de impedimento religioso ou por força do medo do olhar técnico do júri.

Estas são algumas fortes contradições. Mas não são todas, muito pelo contrário. Tais contradições, sempre tão flagrantes em um concurso mundial desta natureza, beiram o paroxismo quando se sabe que, embora se tenham modernizado os costumes no Ocidente, ainda se exige da miss atual, como requisito básico do concurso, um comportamento típico da mulher da década de 1950, quando o concurso foi criado. O topless ainda causa polêmica. As que se desnudaram, embora favoritas, não alcançaram sequer as pré-classificações ao Top 15. E elas ainda devem ser necessariamente solteiras, não podem estar envolvidas em escândalos; ninguém testará sua virgindade, mas continua vedada a sua escolha por tirar fotos sensuais e a maternidade é uma proibição óbvia.

São as regras, vigentes por razões meramente morais, apesar de anacrônicas, deslocadas e hipócritas. É muita contradição, porque reiteradamente misses tomadas como donas de forte apelo sexual têm obtido excelentes resultados, ano após ano. O desfile erotizado, por exemplo, deu à porto-riquenha Zuleyca Rivera o título de 2006. A passarela fashion-vulgarizada de pisoteio forte da japonesa Ryio Mori levou-a à coroa em 2007. A espontaneidade risonha e a quebra de protocolos da engraçada venezuelana Dayana Mendoza garantiram-lhe a vitória em 2008. Fora outros tantos exemplos, passíveis de serem catalogados aos quilos.



De outro lado, os pequenos escândalos cada vez mais parecem construídos e alimentados pela própria organização do concurso. As fotos com topless de Fadil Berisha, algumas com pintura corporal ostensivamente liberal, foram previamente preparadas justamente com algumas das mais badaladas candidatas presentes em Las Vegas, onde aconteceram as prévias do Miss Universo 2010.



Trinidad & Tobago, representado por LaToya Woods, foi a delegação escolhida para propagandear o hotel Mandelay Beach em sua foto oficial sem a parte de cima do biquíni. Rima Fakih, Miss USA 2010, já acumulava sobre si o escândalo das fotos praticando pole dance. A Miss Japão, Maiko Itai, despontou como a mais bem vestida com suas roupas de marcas caras e seus modelitos Gucci – é vista como “moderna e mais top model do que miss”. Mesmo assim, posou seminua e não garantiu sua classificação, como as demais.

Caso mais emblemático foi o da irlandesa Rozanna Purcell. Os valores tradicionais encontram-se tão profundamente abalados na atualidade que o destaque desta concorrente, em todas as bolsas de apostas, se deu justamente pelo modo sexy como se deixou fotografar o tempo todo, para além da sua exótica beleza facial e dos lábios carnudos. Neste turbilhão de erotismo, o maiô – que foi o máximo de despudor possível para uma concursante como a Miss Indonésia – foi escolhido como seu traje de gala, na foto oficial. Sim, seu vestido de noite – que deveria ser longo – é praticamente um vaporoso traje de banho; e isso depois de suas fotos em topless. Foi a única a praticar topless e classificar-se.

Ao vestir um dos mais comentados figurinos da edição de 2010, a Miss Irlanda trouxe consigo o relativismo de todos os modos de ser envolvidos em um concurso desta natureza, especialmente em um tempo histórico de crise de valores como este que lhe coube viver.


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